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Traição e morte na Terra do Gelo e do Fogo

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de acordo com a  notícia, uma foto publicada recentemente em redes sociais alimentou as teorias sobre viagens no tempo. A imagem, em preto e branco, é de 1943 e mostra vários indivíduos – em sua maioria soldados americanos fardados - numa rua de Reykjavic. Perto dos militares, pode-se ver um homem de sobretudo claro segurando, junto à orelha, um objeto que parece um telefone celular. Eu poderia especular sobre como ele conseguiria ligar para alguém naquela época, mas isso seria fugir do assunto da crônica. O que eu quero dizer é que a foto também causou embaraço, constrangimento e tragédia. Em algum lugar da Islândia, uma mulher mostrou a imagem à melhor amiga e perguntou: “Não é o seu marido?!” A outra ajeitou os óculos, apertou a vista e tomou um susto: era ele mesmo, ainda por cima usando o sobretudo que ganhou no aniversário de casamento! E o pior: com o sorriso mais cínico do mundo enquanto falava ao celular. Havia algo de podre naquilo tudo, ela pensou, e não era a carne de tubar

Desemprego em família

  Over the horizon . É o toque do meu telefone. Atendo: - Vossa Mercê é cronista? – perguntou-me o interlocutor. Julguei tratar-se de alguma brincadeira. - Tento ser, respondi. Com quem falo? Ou melhor – devolvi-lhe o arcaísmo da forma de tratamento -, qual é a sua graça? - Meu nome é Alcaide, o substantivo masculino. Tenho reparado que Vossa Mercê de vez em quando usa palavras de antanho na escrita. - O senhor falou o quê mesmo!? Um substantivo... Ele não me deixou terminar e emendou: - Estou ligando para lhe pedir emprego. Caí no esquecimento, faz muito tempo que ninguém me põe no papel. Haveria como me utilizar em alguma crônica vindoura, por obséquio? Não precisa ser no título. Uma simples aparição no meio do texto, ali pela vigésima linha, já seria de bom grado. Tentando me refazer do susto, questionei: - Por que o senhor não procura um escritor talentoso, senhor Alcaide? Não sei se consigo atendê-lo. Ele ficou em silêncio por alguns segundos. Era como se dissesse: “Um escritor ta

Parentético e anspeçada

  Há um rol cada vez maior de palavras que me escapam. Hoje, por exemplo, esqueci pela milésima vez o significado de uma delas – parentético - e tive de recorrer ao dicionário. A bendita palavra é usada para se referir, claro, a parênteses. Creio que ela me foge porque inconscientemente penso em farmacologia ou algo do tipo. “Moço, o senhor tem algum parentético?” “Tenho. Prefere xarope ou comprimido?” Até aí, nada de especial. Em matéria de vocabulário, qualquer que seja o idioma, as coisas devem ser mesmo como escreveu Rodolfo Walsh, um dos ícones da literatura argentina, no conto chamado Esquecimento do Chinês: “Estatísticas mais modernas revelam que um chinês adulto esquece a cada dia, por simples desgaste (sem contar sustos, acidentes e expropriações), uma média de quarenta palavras do seu idioma, que deve reaprender, geralmente à noite, se não quiser ver-se empobrecido e até desprovido da linguagem”. Ocorre que o meu problema não está apenas no esquecimento de palavras. Também há

A irmandade secreta dos perdulários

  Depois de zanzar por quase meia hora por entre as seções da livraria, o provecto senhor finalmente se encheu de coragem e resolveu interpelar uma vendedora: “Vocês têm O Mundo como Vontade e Representação?” Tratava-se uma pergunta retórica, pois ele já havia perlustrado de alto a baixo as estantes dos livros de filosofia e não encontrara a magnum opus de Schopenhauer. Mas, para aquela criatura, o que importava mesmo era fingir que estava procurando uma obra séria. Precisava transparecer um certo refinamento intelectual que, digamos assim, serviria de contraponto ao questionamento que faria em seguida. A vendedora pesquisou em um computador e respondeu que não havia o livro na loja, mas que poderia encomendá-lo, se o homem desejasse. Este agradeceu e – mentira deslavada! - informou que tentaria achar algum exemplar em outra livraria. Após dar três passos em direção à saída do estabelecimento, respirou fundo, voltou-se para a mulher e, tentando fugir da afetação, perguntou: “E o... com

A invenção do relógio

               “O tempo é um rio que corre”                                                            (Lya Luft) O cavalo predileto do rei Ciro teve um trágico: durante uma expedição militar na Babilônia contra os assírios, o animal escapuliu e tentou atravessar o rio Gyndes, mas foi subjugado pela forte correnteza e arrastado para a morte. O monarca, enfurecido, resolveu vingar-se do rio. Jurou torná-lo insignificante ao ponto de alguém ser capaz de atravessá-lo sem sequer molhar os joelhos. Assim, interrompeu a marcha das tropas e ordenou que seus homens cavassem, em direções diferentes, 180 canais em cada margem. A obra demorou meses e, ao final, o outrora imponente Gyndes estava reduzido a 360 pequenos e inofensivos canais. Há cursos d’água que são mesmo perigosos. No quesito mortalidade, a propósito, dizem que ninguém supera um riacho de nome Bolton Strid, que fica na região de Yorkshire, norte da Inglaterra. As águas de Bolton Strid são plácidas e cercadas por musgo, lodo e pedr

Psiquiatria, semáforos e gravatas-borboleta

 Outro dia vi, num semáforo vermelho, um homem vestido como um garçom – com direito a gravata-borboleta e tudo - circulando entre os carros e vendendo garrafas de água, as quais ele equilibrava em uma bandeja circular e prateada. Não sei se tal indivíduo ainda ganha o sustento naquele local, pois nunca mais passei por ali. Eu mesmo lhe comprei uma garrafa. Sempre que posso, aliás, desembolso algum trocado em prol de quem faz da via pública o ambiente de trabalho; gente que dispõe de poucos segundos para convencer os – no mais das vezes mal-humorados – motoristas. Há os tradicionais vendedores, mas também existem cantores, dançarinos e artistas circenses: malabaristas, engolidores de fogo, equilibristas...   Gosto de circo. Sempre que aparecia um na cidade onde cresci, meu pai me levava. O número que mais me impressionava era o do funâmbulo. Um ou outro profissional do arame esticado dispensava a rede de proteção. Que cara doido!, eu pensava. Bons tempos.   Mas deixemos as reminiscência

A insônia do morador do 508

Contrata-se um detetive particular por vários motivos: investigação amorosa, localização de pessoas, contraespionagem empresarial ou industrial, etc. O septuagenário viúvo do apartamento 508, no entanto, procurou um desses investigadores porque – e nada mais que isto - necessitava dormir.   Nunca tivera insônia. Das vinte e duas às cinco, com pouca variação no horário, mergulhava num sono que apenas era interrompido por três ou quatro minutos durante a madrugada, tempo necessário para levantar, esvaziar a bexiga e retornar aos lençóis. Além da naturalidade com que se entregava ao irmão gêmeo da morte, certas coisas ainda contribuíam para que suas pálpebras desabassem. Uma delas era o tamborilar da chuva no asfalto, nos carros lá embaixo, nos prédios ao redor, nas janelas do seu apartamento... As águas pluviais lhe traziam reminiscências da infância despreocupada no sítio dos pais, ambos lavradores. Ocorre que, por ironia, o que lhe causava a insônia era justamente algo que já foi

Quero conhecer Teufelsberg

  Daqui a alguns meses, se tudo der certo, vou tirar a poeira do passaporte. Há tempos tenho vontade de conhecer a Alemanha, mesmo porque sou fã da história da Segunda Guerra. Pesquisando sobre a capital, vi que existe lá uma atração turística não muito conhecida chamada Teufelsberg (Montanha do Diabo, em alemão). Dizem que o nome do lugar – o ponto mais alto da cidade, aliás - é em razão de um curso d’água que passa perto dali, chamado Lago do Diabo. Acho que o motivo é outro. Montes e montanhas costumam ser sagrados. Não é para menos: essas elevações são uma espécie de meio caminho entre céu e terra. É nas alturas formidáveis que o homem se comunica melhor com Deus. Moisés recebeu os dez mandamentos no Sinai; Maomé foi proclamado profeta de Deus pelo anjo Gabriel no Hira; o panteão grego morava no Olimpo; os incas creditavam às montanhas o domínio sobre o clima. A transcendência está na razão direta da altitude, por assim dizer. Já o diabólico, como se sabe, permanece confinado às pr

O leitor largado às traças

  Os piores flagelos dos livros não são os incendiários bombeiros de Fahrenheit 451. Muito menos os amigos da onça que lhe pedem algum exemplar emprestado e nunca mais devolvem. São, isto sim, os minúsculos insetos que, no século XVII, foram comparados a um “dente do tempo” por Richard Hooke, cientista inglês: as traças. Durante uma das inspeções na minha biblioteca, notei que tais bichos me danificaram meia dúzia de livros, dentre os quais – eis a injúria adicionada ao insulto! – um dos preferidos: Uma História da Leitura, de Alberto Manguel. Diante do imperdoável ataque, nada havia a ser feito, portanto, a não ser declarar guerra àquelas criaturas. Naquele momento, pouco me importou a existência de repelentes caseiros à base de vinagre ou limão. Também de nada me serviu a posição da ONU sobre o uso de armas químicas. Sem demora, comprei um inseticida direcionado às pragas de biblioteca. Uma mistura mortal à base de uma substância até então desconhecida para mim: empentrina. Antes de

O Eclesiastes é chamado a depor

  Um grisalho senhor entrou em um restaurante grã-fino, dirigiu-se a uma das mesas e descarregou o revólver no peito de um ex-amigo. Jogou a arma no chão e ficou ali mesmo, em pé e imóvel, olhar perdido, esperando a polícia chegar. Tudo contribuiu para a repercussão do caso. Em primeiro lugar, o local em que se deu o crime, bem como a condição social da vítima e do público que presenciou a tragédia. Depois, a reputação do autor, homem cuja fama não vinha de dinheiro ou poder, mas sim de um caráter retilíneo, sem máculas. Ninguém entendeu como uma pessoa assim poderia cometer um delito tão violento, mas era justamente a conduta até então irrepreensível que guardava a explicação do episódio. Ocorre que a vítima do homicídio, na intenção de enlamear o desafeto, acusou-o do único e singelo deslize de que tinha conhecimento: a apropriação indébita de um livro. “Quando éramos amigos, emprestei um livro àquele santarrão e ele nunca me devolveu”, costumava dizer. A obra era uma edição comentad